Uma Menina Dentro do Espectro Autista parte III

Uma Menina dentro do Espectro Autista III

 Ingressei na fase adulta aos trancos e barrancos. Optei pela faculdade de psicologia mesmo tendo passado para o  curso de jornalismo. Os ambientes ainda seriam perversos, complexos e violentos. A minha raiva projetada em mim mesma, acredito que nesta fase o meu corpo começou a dar sinais de exaustão.  As crises vinham com dores de cabeça, choro, isolamentos e todos os contatos sociais que tinha por mais tempo me deixavam cansada por dias Passei a estudar sobre o Espectro Autista e conviver com algumas durante os meus estágios Ao perceber pessoas “de perto” tão parecidas comigo, vislumbrei um caminho possível, tinha 20 anos.

 Me relacionava, inclusive de forma romântica, mas imitava personagens. Me despersonalizar para poder ingressar em grupos, isso faz com que eu vá perdendo a minha identidade. Quando a gente se acostuma por tempo demais em imitar, camuflar,acaba perdendo a nossa real versão. Sabia que no fundo eu era diferente, mas insistia em tentar me adaptar. Era comum imitar gostos alheios para não me sentir fora de grupos sociais. Por mais que não gostasse por exemplo de certos gostos musicais, acaba relevando para poder socializar. Geralmente deixava os meus gostos pessoais de lado para poder acompanhar os grupos que tentavam me inserir.

Ao longo do tempo recebi o diagnóstico errado, bipolaridade. A primeira vez foi em 2010, depois da perda do meu avô. Talvez nem tenha passado pela cabeça da médica que me acompanhou ter um pouco de sensibilidade pelo momento do luto que estava passando. Nem a questão de tentar compreender o que tinha por trás dos meus sintomas. Dá trabalho diagnosticar uma menina para o Espectro Autista. Nós mulheres somos seres geralmente mais sociais, acabamos desenvolvendo  mais recursos para tentar conviver. Mas aos 20 anos, não dei bola para este “rótulo” Segui a minha vida do jeito que deu até os 27. Tinha uma instabilidade crônica, parecia que algo sempre estava fora do lugar.Vivia  por um fio,tentava dar conta de tudo. Me formei, escrevi dois livros, namorei, me separei, vivi lutos, me descobri na psicologia. 

Mas a ansiedade sempre ali à espreita de algum gatilho. Conviver continuava sendo um problema. Sem muitos amigos, ainda preferia ficar isolada. A solidão nunca me incomodou, pelo contrário sempre me ajudou a me organizar. Mas os meus mecanismos de autodestruição continuavam em alta.  Comecei a ter muitas crises de pânico, a instabilidade tomou conta de mim. Não sabia qual era o problema exato, mas sabia que precisava de ajuda. Foi assim que a minha vida tomou um rumo inesperado. Os médicos desta vez nomearam mais uma vez a bipolaridade. Por mais que tivessem elementos suficientes para investigar outros possíveis caminhos. Os primeiros remédios errados me forneceram uma crise de mania, ou seja, um estado de agitação mental que me levou a romper com a realidade. 

Perdi a conta de quantas vezes nestes últimos anos os remédios apagaram memórias, me transformaram em alguém robotizada. Os especialistas diziam que isso fazia parte de amenizar os meus sintomas, mas isso me transformava em outra pessoa. Em alguém que vivia no automático, sem poder de escolhas, apenas seguia o fluxo dos dias. Todo este estado me levou a parar de ler, escrever e foi me afastando de tudo que trazia uma sensação de serenidade.

Me sentia mais próxima da morte do que da vida neste período. A depressão faz com que você pinte o mundo em escalas de cinza. Tudo ao redor vai perdendo a graça, mesmo as coisas que te deixavam feliz, simplesmente perdem o propósito. Sempre tinha uma ideia martelando, isso me gerava crises. Mas isso não era escutado pelos médicos, tudo era interpretado pela minha bipolaridade. Tudo fazia parte de uma alteração de humor, cada vez que ficava agitada, as doses subiam mais e mais. Com elas, me sentia cada vez mais depressiva. Por mais que eu seguisse tentando cumprir a minha rotina, era pesado.Sentia que as pessoas ao meu redor conseguiam dar conta das coisas de uma forma mais fácil, mas para mim tudo tinha um peso maior. Acredito que as medicações “sufocaram” a minha criatividade.

Aos 33 um caminho chamado Espectro. A maior dúvida que as pessoas têm é se eu me tornei autista depois de adulta. Acho que não teria que explicar depois de ter descortinado a  minha história. Já que durante todo o meu desenvolvimento havia sinais claros que algumas não ia bem. O problema é que os anos 90 eram complicados para conseguir um diagnóstico na primeira infância. Percebo que na adolescência se tornou mais complexo pela gama de sintomas advindas da minha idade, hormônios, oscilações de humor o que poderiam caracterizar algo desta fase. Já a partir dos anos 2000, mais precisamente por volta de 2010 quando ganho o meu diagnóstico de bipolaridade, aí sim eu vejo uma falta de preparo e interesse médico. Se algum deles tivesse escutado de fato o que eu falava, ou ter me encaminhado para avaliações que poderiam medir o meu grau de sofrimento e prejuízo talvez teria esbarrado mais cedo na ideia do Espectro Autista. O “engraçado”  é que no fundo sempre soube o que eu era, mas tudo fica complicado quando o mundo inteiro diz o contrário.

O objetivo é vislumbrar os possíveis destinos a partir do que sou agora. Adultos como eu que foram diagnosticados na fase adulta, tiveram que sobreviver com os recursos que tinham. Muitos de nós  foram tentando se adaptar criando estratégias  a partir das suas próprias experiências. O que muda com o diagnóstico? Fora as questões legais, a busca  por profissionais capacitados, o autoconhecimento. Todos os dias eu leio mais sobre o Espectro Autista, tento me inteirar de todos os estudos, novidades e avanços. A partir da minha escuta em psicoterapia onde atuo auxiliando pessoas na busca por seus diagnósticos, posso escutar como elas se sentem com os seus Espectros.  Acredito   na singularidade de cada pessoa, assim por mais que tenhamos algo em comum, por se tratar de um Espectro cada um lida, se desenvolve, evolui de acordo com suas habilidades e potencialidades. .

Falar da minha trajetória não é algo simples, mas se faz necessário.  Quem sabe alguém que lê o Carpinteiros pode se identificar e dar um próximo passado, Podem ficar mais tranquilos que hoje em dia temos pessoas dedicadas em estudar o Espectro Autista a fim de gerar maior qualidade de vida e promover a saúde de forma integrada.

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