Eu que vivo de fases como as da lua, inaugurei uma. Desapegar são as flores da minha nova estação.
Tudo começou com um revirar de mobílias. Em cada cômodo, uma gaveta entreaberta. Encontrei uma porção de escombros do que um dia fui. Um reencontro com as minhas sombras. São necessárias para recordar para onde já não posso voltar. É preciso criar novos espaços e memórias.
Deixei por ali as minhas personalidades que não cabem mais vestir. A menina insegura que se escondia em uma pilha de medos. A garota que colava nos outros para poder pertencer. A adulta que surgia desde os primórdios da minha criação a fim de demonstrar uma maturidade para tudo. A independente que nega ajuda e é alérgica a afetos. Resolvi abandonar também as versões que insistiam em cultivar amizades unilaterais. Com isso, foi necessário romper os laços que cresciam de todas as partes de memórias platônicas,imaginárias de tudo que criei apenas na minha cabeça.
Foi assim de forma lenta, mas precisa que desapeguei do que ainda restava de nós dois. Ainda esbarrava em trechos de livros, refrões de canções, fotografias amareladas e presentes. Uma forma de encontrar o que achava que um dia fomos, mas não fomos capazes de vivenciar na vida real. Olhando agora para nossa história, inventei versões da gente talvez como uma forma de ficar submersa em partes boas. Por muito tempo pouco importava se o desfecho tivesse sido exatamente assim, gostava das formas que inventei para caber em uma narrativa menos ácida.
Talvez eu ainda tenha que desapegar dessa mania de cultivar esperança onde não nasce reciprocidade. Instinto em procurar a parte boa das pessoas, mas a bondade não deveria ser algo que a gente devesse cavar. As pessoas não são como petróleo, não deveria ser tão complicado ficar tentando encontrar verdado, carinho e respeito. Isso deveria fluir de forma natural e quase instantânea, se os vínculos nascem de forma genuína. Mas ao passar dos anos, fiquei cultivando vários relacionamentos a espera de afetos reais que se rompiam em camadas de toxicidade e perversidade. Na maior parte do tempo, aguardava por milagres. As tais mudanças que a gente espera dos outros, quando na realidade em menor sinal de faltas sejam quais forem, melhor a gente mudar de lugar.
Acredito que cultivar um relacionamento amoroso onde a reciprocidade impera junto com o compartilhar mútuo de todos sentimentos e experiências, fez eu não querer mais aceitar as migalhas de outros tipos de vínculos sejam quais forem. Para isso preciso desapegar de pessoas, também dos objetos colecionados ao longo do tempo que geram gatilhos. A gente insiste em ficar apegado às coisas e nas pessoas por mais que elas não existam mais. Uma forma de ficar emaranhado em um mar denso de memórias e sensações que muitas vezes existiram apenas na nossa imaginação. Duro pensar que muitas vezes que nos dedicamos aos outros não recebemos nada em troca. Com isso, não estou falando que devemos nos relacionar em busca de aprovação. O que eu quero dizer é que à medida que nos vinculamos, afetos reais começam a surgir.
As trocas de experiências são as que formam os afetos reais. Dentro de amizades há um compartilhamento de experiências que tecem sentimentos. Esses geram intimidade, confiança e uma porção de outras sensações. O problema é que muitas vezes essa via é traçada de forma única. Você se doa, se entrega e outro resiste, puxa os holofotes apenas para suas narrativas, te procura em troca de algo. Se mostra presente quando precisa de algo. Uma espécie de narcisismo muitas vezes camuflado que cria sentimentos estranhos dentro da gente. Passei a vida inteira dentro dessas relações por insistir por muito tempo que precisa ter um amigo seja como for. Com isso, acabei me despersonalizando para poder caber no mundo do outro. Me deixar de lado para suprir expectativas alheias, fez eu esquecer de quem eu era.
Está na hora de abandonar velhos hábitos, Por mais dolorido que seja romper, preciso deixar ir embora tudo o que atrasa a minha alma e deixa acinzentado o meu mundo interno. A virada de chave para que isso pudesse transcorrer agora, foi o desastre que assolou o Rio Grande do Sul. Ao voltar para casa fui tomada de impulsos frenéticos de desapegar de tudo que não fazia mais sentido. Ao traçar novos destinos para as materialidades já não úteis, comecei a refletir que era hora de me despedir de algumas pessoas. Muitas delas já não existem no meu dia, mas insistem em morar no meu mudo interno. Fico remoendo relacionamentos que não deram certo, muitas vezes em processos de culpa e rancor. Fico pensando como pude me deixar levar, acreditar mais uma vez e me deixar ferir. Romper com esses processos pode ser que abra espaço para elaborar o passado a fim de inaugurar novos espaços para a chegada de novas pessoas, caso eu me sinta confortável. Já que confiar ao longo do tempo se tornou um problema, foram tantos corações partidos. Alguns eu parti, outros partiram o meu. Seja como for, relacionar sempre se torna uma pauta delicada, mas talvez seja a hora de cultivar os vínculos que restaram.
Preciso continuar a prática de desapegar de tudo que aciona minhas versões cruéis e mesquinhos. Assim como criar estratégias de desapegar das ciladas de vincular com quem não corresponde. Investir em desapegos será a minha nova fase, espero que ela perdure por bastante tempo. Ainda há muitos lugares para visitar a fim de fazer uma faxina e talvez reciclar algo. Agora preciso ir, há caixas de papelão por todo o corredor, hora de desapegar.
