Espectro Autista e o Carnaval

Muitas questionam o que as pessoas dentro do Espectro Autista fazem no carnaval.

Estar dentro do Espectro Autista não limita ninguém. Cada Autista é  singular repleto de desejos e vontades. Tem os que curtem viajar, outros celebram o carnaval, cada um escolhe passar estas datas da maneira como se sentir confortável. 

Há um preconceito em achar que as pessoas autistas não socializam. Não saem com os amigos. Não gostam de  festas. Não viajem. Há uma imagem ainda de nós autistas encerrados dentro de casa sem contato algum com a humanidade. No meu caso, adoro ficar em casa, as minhas festas geralmente envolvem eu, meu marido e nossos seis gatos. Gostamos de maratonar séries, ouvir nossas playlists, dançar pelo apartamento, inventar drinks e testar um  novo prato. Não preciso sair de casa para ir em alguma festa, gosto de fazer as minhas próprias festividades em casa.

Mas se tenho que sair para algum lugar,  tento escolher lugares e companhias onde possa me sentir confortável. Salvo compromissos sociais que devo ir por educação e a minha presença é importante, organizar mentalmente a minha rotina antes de poder comparecer é fundamental. Já que ela será alterada e geralmente estes tipos de eventos podem gerar gatilhos. Estes disparam ansiedades, pânicos, medos absurdos e uma chuva de pensamentos intrusivos. Então todo compromisso que me exige algo social que eu preciso cumprir, tento minimamente organizar tanto os meus pensamentos, a minha rotina, a minha roupa, os meus materiais e até mesmo ensaiar diálogos. É comum eu ter mapa dos lugares, conhecer previamente faz que eu me sinta mais confortável em saber quais são as saídas.  Já que não é raro que nestes tipos  de situação me sinta tão sufocada por estímulos sensoriais que eu precise sair às pressas. A minha “bateria social” geralmente dura em torno de uma hora a duas horas.  Na maior parte do tempo faço uso do recurso habitual do masking. Crio personagens, eu  imito comportamentos das pessoas neurotípicas e fico analisando a todo momento o ambiente para saber como devo agir, o que falar e o que devo omitir. Raro ser eu mesma nestes tipos de situação, na maior parte do tempo fico contando os minutos para ir embora ou fico distraída com o que se passa dentro da minha mente.

Nestes cenários mais difíceis de conviver sempre busco alternativas para conseguir sobreviver sem ter uma crise. Então uso sem moderação a minha imaginação e criatividade para literalmente ficar submersa nos meus pensamentos. Invento coisas para me distrair de tudo que possa me gerar qualquer gatilho para me sentir mal. Fico contando quantas pessoas estão vestidas de tal maneira, qual tipo de música está tocando, analiso detalhes do ambiente entre outras coisas.  Tudo isso funciona para tentar desfocar o que  gera desconforto de  estar exposta socialmente.  Fico de corpo presente, mas a mente fica viajando em mil pensamentos. Geralmente respondo  apenas o que me perguntam, rio nos momentos certos, digo frases automáticas e tento não demonstrar sentimentos. Outro problema recorrente é que geralmente este tipo de situação é uma luta constante por socializar mesmo sem vontade e tentar driblar os ruídos. Já que a minha hipersensibilidade com barulhos altos, conversas paralelas, luzes fortes entre outros podem alterar o  meu humor  e me deixar com menos tolerância em permanecer.  O contato muito próximo, os cheiros, as texturas tudo isso também me causa desconforto. Bem comum eu sair à francesa como dizem.  Mas como eu sempre digo a gente aprende a mascarar e camuflar para sobreviver,  mas podendo evitar este tipo de celebração eu prefiro.

Me sinto mais confortável em ambientes onde possa controlar. O horário de entrar e chegar, às pessoas que estarão ali e a forma como as coisas irão acontecer. Tudo que é planejado por mim com antecedência me deixa bem mais tranquila. Isso geralmente acontece em três formas distintas. No meu relacionamento, com os meus pais, no meu grupo seleto de amigos. O número de pessoas que me sinto confortável para interagir é no máximo quatro, mais do que isso já não consigo acompanhar conversas. Minha cabeça em eventos sociais dispersa com frequência. Por isso gosto de sair com poucas pessoas e nestes momentos consegui estar de fato presente, prestando atenção, demonstrando afeto. Tenho poucos amigos e gosto de sair com eles de forma individual até porque eu gosto de dar e receber atenção de forma quase integral. Com os meus pais, que são os meus melhores amigos, também prefiro muitas vezes ter a companhia deles de forma individual. Gosto de ter a minha mãe por perto para conversar sobre tudo, sair para caminhar pela cidade, visitar a minha avó, cozinhar, trocar segredos e organizar a casa. Com o meu pai gosto de conversar sobre história e política, pedir conselhos, tomar decisões e ouvir sobre suas experiências. Cada pessoa de forma individual me deixa mais à vontade para que eu consiga ser eu mesma. O que não quer dizer que mesmo com essas pessoas, às vezes não precise me camuflar ou imitar, mas isso acontece em poucos momentos. Geralmente quando estou em crise ou conhecendo alguém novo. Algumas vezes para não magoar elas de nenhuma forma.

No meu caso, já que isso é importante de ser ressaltado nos meus textos, trago como eu vivencio o meu Espectro Autista. O que não quer dizer que você dentro do Espectro seja igual, podemos ter coisas parecidas e também sermos completamente diferentes. Ter a consciência que estar dentro de algo é diferente para cada pessoa é o que nos torna singulares e únicos. Eu gosto da minha solidão, posso passar horas, dias sozinha. Gosto da minha companhia, me divirto comigo mesma e sempre encontro formas novas de encontrar alguma diversão. Gosto de ir em cafés, cinemas, restaurantes, mercados, andar pela cidade, museus, livrarias, bibliotecas e outros lugares apenas na minha presença.

Desde muito novinha sempre me diverti muito comigo mesma e isso perdura até hoje. Eu gosto de criar coisas novas, cultivar as minhas manias, ter os meus rituais e ter dias dedicados apenas para mim mesma. Não vejo problema algum nisso, acho que saber apreciar a nossa própria companhia nos torna menos carentes e dependentes. Hoje consigo dividir os meus momentos com o meu marido, mas nós valorizamos e respeitamos os nossos próprios espaços. Com isso, cada um tem seus próprios gostos, vontades, desejos e passatempos. E  em alguns momentos quando os dois se sentem confortáveis a gente divide tarefas e tempos juntos. Mas eu sempre achei bizarra a ideia de ter que estar acompanhada seja por um amigo ou por um par para fazer as coisas. Eu sempre fui educada a ser protagonista da minha história, dona do meu nariz. 

Minha mãe desde que eu aprendi a caminhar, pelo que me recordo, me ensinou para a vida como ela mesma gosta de dizer. Sempre ajudei no mercado, nas compras, na organização da casa. Seguia uma rotina, era responsável pelas minhas coisas e pelas minhas tarefas. Apesar do que a sociedade acha sobre filhos únicos serem mimados, minha mãe nunca passou a mão na minha cabeça. Sempre tive senso de certo e errado, o que era justo e injusto e qual a responsabilidade pelas minhas escolhas e também pelas minhas não escolhas. Assim desde muito cedo aprendi a me responsabilizar e me sentir dona de mim mesma. Este sentimento de autonomia, de protagonismo fez que eu sempre me virasse sozinha e corressem atrás do que queria. Isso se projetou e se expande para todos os cenários da minha existência. Só posso agradecer ao empenho, dedicação e a capacidade de aprendizagem que a minha mãe teve comigo. Desde ensinar a ler e escrever, dizer a verdade, cozinhar, organizar a casa, seguir um propósito, tecer sentido de vida, ter uma consciência limpa, o peso das palavras e tantas outras coisas que fomentam em mim desde muito pequena um instinto quase inato de sobrevivência. Como se ela  soubesse desde muito cedo que não poderia me defender, me proteger sempre. Assim, eu deveria aprender a lutar  e a sobreviver. Isso construiu em mim uma sensação de independência, de liberdade. Talvez seja isso que me salve de relacionamentos abusivos, escolhas autodestrutivas e toda decisão que poderia se tornar perversa.

Talvez tenha dado essa volta e você esteja se perguntando o que isso tem haver com o carnaval. Sou uma pessoa que mesmo antes de descobrir o Espectro sempre foi avessas as festas. Eram meras formalidades que eu era obrigada a cumprir. Isso de fingir felicidade fazia apenas acionar o meu mecanismo de camuflar e imitar. Durante muito tempo e até bem pouco tempo atrás achava que tinha  que agradar os outros. Deixar os outros felizes era sempre o pensamento intrusivo que guiava as minhas escolhas. Passava por cima dos meus limites, vontades e desejos. Achava que  se eu agradecesse os outros estaria tudo bem. Quando na realidade as ressacas sociais, a exaustão corporal e mental, as crises que antecedem as festas e as que perduram depois são imensuráveis.

O não respeito ao meu próprio mundo interno eram absurdos. Os danos e os efeitos colaterais invalidam aquelas horas fingindo estar feliz. Então após o meu diagnóstico assinei a minha alforria. Só vou aonde quero ir, com eu quero ir, fazer o que tenho vontade. Por mais que possa parecer absurdo, me dou o direito de não  ir até mesmo no que parece ser imprescindível a minha presença. Se não estiver bem, se for abusar da minha saúde, principalmente mental, eu prefiro não correr o risco. Após as festas que todo mundo chama de ressaca, o meu sempre foi permeado por culpas, medos novos, ansiedades que cresciam como erva daninha. Fico lotada de pensamentos intrusivos,  remoendo conversas e situações e geralmente a minha cobrança social é tão alta que acabo adoecendo. Então depois de 30 e poucos anos, decidi que seja no carnaval ou em qualquer outro evento eu vou ou não celebrar como eu gosto.

Hoje em dia você vai me ver saindo com poucos amigos ou ao lado da minha família. Mais comum você me encontrar em casa dançando descalça e descoordenada. Falando  sozinha ou com os meus gatos. Prefiro ser feliz sem precisar imitar ou camuflar. Já que ser eu mesma ainda é uma uma utopia, me dou a liberdade de ser eu mesma nos poucos lugares e para as poucas pessoas que cativo.

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