O Fardo de ser Autista Nível I

O Fardo de ser Autista Nível I

A minha busca por saúde mental se tornou uma saga. Ao longo dos últimos anos fui diagnosticada de forma equivocada. O que levou a diversos prejuízos em todos os cenários da minha vida. 

Até que ano passado fui diagnosticada dentro do Espectro Autista.  Existem três níveis que geralmente são usados para classificar o Autismo. O meu nível  I é visto como o mais “leve”, que exige menos suporte e o que pode levar uma vida funcional. Este é o ponto do qual quero discorrer já que por ele pareça mais ameno do que os outros níveis que exigem mais suporte e atenção, esquecemos o peso do Autismo Leve. Muitas vezes ele demanda menos cuidados e as pessoas acabam não compreendendo o impacto na vida de quem está inserido nele.

Autista Nível I

O que mais eu escuto é que eu pareço “ menos autista” do que os outros. Já que geralmente as pessoas dentro do Espectro Autista Nível I há a preservação das faculdades mentais.Muitos como eu foram a escola, fizeram faculdade, mantêm relacionamentos e conseguem desenvolver as atividades do cotidiano.  O que está por trás deste esforço de conseguir cumprir as exigências do dia a dia é que se criam alguns mecanismos de defesas presentes para a maioria das pessoas que estão dentro do Espectro Autista Nível I. Vou trazer alguns pontos importantes ao longo do texto, mas gostaria de citar um pouco como eu me sinto dentro do Espectro. Por mais que eu tenha consciência e esteja descrito no meu laudo  médico que eu tenho altas habilidades e altas funcionalidades. Isso traz algo reverso que é a minha auto cobrança. Por saber que tenho habilidades e talentos fico todo tempo me cobrando para tentar superar expectativas, entregar as demandas de forma impecável. O que vem uma enorme intolerância a frustração quando algo não sai como o  planejado e uma culpa terrível que carrego por toda vez que eu cometi um deslize. Pode ser um erro bobo aos olhos alheios, mas que tem um peso enorme dentro de mim. Como sei todos os meus pontos fracos ficam expostos socialmente. O medo de gaguejar, trocar palavras, perder as ideias na minha cabeça, demonstrar estar confusa ou ansiosa. Tento esconder a todo momento qualquer vestígio que possa demonstrar as minhas vulnerabilidades, acabo ficando exausta.

O mecanismo mais comum encontrado dentro do Espectro Autsta nível I é a despersonalização.  Caracteriza-se por uma sensação que persiste ou acontece de forma regular. Há o desligamento do próprio corpo ou dos próprios processos mentais. Como se a pessoa se transformasse no observador da sua  vida. Há um desligamento do ambiente como se fosse uma espécie de defesa que o cérebro encontra para poder suportar a realidade. Uma forma da mente tentar retirar a pessoa daquela situação incômoda. No meu caso isso acontece em todos os eventos que eu sou pega de surpresa e tenho que conviver socialmente. Tudo que quebra a minha rotina que me atravessa e eu não tenho uma antecipação daqueles eventos, este mecanismo acontece. Pode surgir com visitas inesperadas, encontrar uma pessoa ao acaso, reunião fora de hora. Mas às vezes isso ocorre mesmo quando eu já sei do evento, mas ele se torna exatamente o oposto do que planejei. Pode ser coisas pequenas ou grandes, mas geralmente a matriz é tudo que sai do controle, do planejado e exige um nível muito alto para tentar lidar com os estímulos e expectativas que surgem de forma inesperada.

Um dos sintomas mais comuns depois que este mecanismo é acionado é a exaustão social. Quando isso acontece geralmente levo de dois a três dias para me sentir bem de novo. Como se todo o meu corpo estivesse com uma ressaca muito forte. A minha mente fica em modo automático, conseguindo realizar apenas tarefas simples que não exigem muita complexidade. Às vezes os sintomas físicos incluem crises de ansiedade, irritabilidade, sono em excesso ou insônia, náuseas, dores de cabeça e letargia. Quando exijo demais de mim mesma em uma situação social do qual sou exposta geralmente sofro de uma exaustão que perpassa mente e corpo. Geralmente todas as vezes que eu socializo exige um pouco, mas quando há elementos surpresas a sensação é que fui assolada por um terremoto de altas escalas. Vou juntando os meus escombros ao longo dos dias, o que ajuda é voltar para casa e ficar submersa de forma confortável. Geralmente nesses momentos gosto de ficar com a minha solidão a fim de poder me reencontrar. Hiperfocos ajudam neste momento livros, séries, filmes, músicas e  banhos demorados.

Há outros sintomas pouco explorados dentro do Espectro de Nível I. Fora a despersonalização ela pode vir acompanhada de outros elementos. Os distúrbios sensoriais que no meu caso são os barulhos altos, lugares lotados, conversas paralelas e todo os ruídos ambientes. Geralmente isso piora em momentos que tenho que me expor socialmente, como se todo o ambiente atrapalhasse para concentrar e focar.A questão da rotina é um aspecto bem importante para pessoas dentro do Espectro Nível I, seguir uma certa ordem e organização é fundamental  para manter o nosso equilíbrio. Tudo que sai disso pode gerar crises, hoje consigo entender que a vida tem imprevistos tanto para mim mesma quanto para as pessoas ao redor, mas isso não se torna mais  fácil de ser elaborado.  Seguir ordens e normas sociais é um ponto estressante. Temos tudo ensaiado nas nossas mentes para tentar minimamente conviver. Mas é um esforço gigante para acompanhar conversas, entender piadas e metáforas, demonstrar interesse e afeto e conseguir suportar a exposição social. Eu tenho recursos básicos para conseguir conviver que é sempre contar piadas, pensar em coisas divertidas e bobas para quebrar o  gelo do ambiente. Sempre tento fazer uma personagem descontraída por mais que por dentro possa estar abarrotada de ansiedades. Geralmente nunca sou totalmente eu mesma, em poucos momentos e com poucas pessoas consigo ser exatamente como realmente sou.

Aí vem outro ponto bem complicado para quem está dentro do Espectro Nível I é a nossa consciência de certo e errado. Do que é aceitável e não aceitável dentro da sociedade. O receio de chocar as pessoas, ser mal interpretado, tentamos esconder nossos rituais, manias e movimentos estereotipados. No meu caso eu falo sozinha em todos os lugares, mas às vezes ter que falar sozinha baixinho em lugares públicos é um desafio.  Canto em voz alta, sacudo os meus braços ou danço quando estou feliz.  Ao  menor sinal que posso estar sendo observada, o medo do julgamento é tão assustador que eu tenho movimentos de fuga já ensaiados e por em crises mais severas eu paraliso.. Complicado saber o que se pode fazer e não se pode fazer em público, tem dias que tudo que eu mais quero é voltar para a minha solidão confortável aonde posso ser exatamente eu mesma. No meu caso se fosse socialmente aceito não andaria de sapatos, não penteava os cabelos, não combinaria as minhas roupas, cantaria e falaria sozinha em todos os cantos da cidade.  Fora a minha enorme sinceridade que é o famoso não ter filtro comum dentro do Espectro Auista que é poder falar o que vem  à mente. Não sei mentir, aprendi a mentir socialmente para conseguir conviver, mas isso é exaustivo. Às vezes tudo o que queria era mandar umas pessoas catar coquinhos.

O peso do Autismo Nível I é igual ou maior ao peso nos outros níveis do Autismo. Por isso não podemos desmerecer ou desconsiderar os sintomas, as crises, os prejuízos e os danos. É preciso falar sobre como  nos sentimos a fim de criar estratégias mais saudáveis que possam amenizar algumas coisas trazendo maior sentido de vida. Algumas ferramentas são a busca por autoconhecimento que pode gerar maior qualidade de vida. A psicoterapia, redes de apoio, a espiritualidade, trabalho confortável, grupos de apoio, medicação entre outros. Cada pessoa dentro do Espectro é única e deve ser valorizada dentro de suas singularidades. Às  vezes o que funciona para mim pode gerar crises  no outro. Por isso é fundamental conhecer o que funciona para você e não funciona.

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