Uma Menina Dentro do Espectro Parte II
Durante a infância embarquei em uma primeira tentativa de terapia, mas eram os anos 90 e pouco se sabia de fato sobre o Espectro Autista. Minha professora achava esquisito eu ser isolada, mas foi constatado que este era o meu jeito. Traços da minha personalidade que poderiam mudar ao decorrer da minha jornada.
Quando me deparei com o meu diagnóstico tardio para o Espectro Autista tento revisitar alguns lugares na minha infância. Mas não consigo perceber traços ou sintomas marcantes que poderiam ter sido notados de forma diferente.Noto que havia sim algumas características, mas poderiam facilmente passar despercebidas, como acabaram passando. Uma das dúvidas que mais me questionam é se tenho mágoas ou algum tipo de ressentimento por não ter sido percebida com uma menina Autista na primeira infância, sou uma pessoa muito resolvida com a minha jornada como um todo. A medicina ainda engatinhava por avanços, a psicologia ainda era vista como artigo de luxo e escola não mudou muito, tentavam encontrar espaço para inclusão.

Gostaria que ficasse muito claro para quem acompanha a minha jornada, sou muito grata por todo o meu processo. Não tenho arestas em aberto com os meus pais, com os profissionais que me acompanhavam e nem mesmo com as pessoas que praticaram atos cruéis. Respeito demais os processos de cada pessoa, de certa forma sempre transformei momentos complexos em algo maior. Se não fossem as “pedras” do caminho talvez não a arte não me convidasse a escrever. A escrita é a forma onde posso elaborar a minha trajetória, então se capa impasse nasce uma inspiração. Mas olhando em perspectiva posso vislumbrar que a minha infância era solitária em meios sociais aos quais era exposta, como a escola ou grupos. Geralmente com pessoas que possuíam pouco afeto, me retraía, mas a minha criatividade dava combustível para lidar com a realidade externa e organizar a interna; Então não vejo que não havia tanto sofrimento, tiveram situações pontuais de perversidade, algumas físicas, mas muito mais palavras duras. Talvez estar no Espectro Autista tenha me blindado de alguma já que pouco entendia o comportamento das pessoas, principalmente quando elas agiam de alguma forma que não compreendia.

A minha infância ao lado das pessoas que amava, criava vínculos repletos de afeto e intimidade. Passei a infância cercada por brincadeiras, principalmente ao lado do meu avô Antônio. Fazer xarope de framboesa, jogar dominó, aprender a andar de bicicleta, cuidar dos animais e da natureza, aprender o gosto pelos livros e números. Ao lado dos meus pais sempre teve muita conversa sobre absolutamente tudo, a comunicação sempre foi livre de censura ou julgamentos. Aprendi desde muito cedo sobre diversos assuntos, sem tabu, mitologias ou mentiras confortáveis. Assim como desde muito pequena fui ensinada a participar nas tarefas de casa, ser responsável pelas minhas coisas e também pelas minhas ações. Ou seja, uma criação calcada em valores que formaram a minha ética e a satisfação de ter uma consciência tranquila. Em casa era uma criança tagarela, curiosa e extremamente atenta. Sempre gostei de analisar, estudar, correr atrás de soluções e ideias. Fui estimulada a pensar com a minha cabeça, caminhar com os meus próprios pés, ou seja, a minha personalidade e o meu espaço sempre foram respeitados.
Como curiosidade, na minha infância gostava de assistir os meus filmes preferidos dezenas de vezes, Alice no País das Maravilhas e o Ursinho Pooh. Sempre gostei de entretenimentos que seguiam uma certa sequência, mantinham elementos parecidos, por isso Chaves e Chapolin sempre foram os eleitos. Falo sozinha , com os objetos e os animais desde que me conheço por gente. Nunca aprendi a mentir, sempre fui um tanto sem filtro e falo sem pensar. Ditados populares, metáforas e respostas prontas sempre foram complicadas de serem aprendidas.Acreditava em tudo que me diziam, era vista como ingênua ou boba, mas sempre foi complicado não acreditar nas pessoas. A realidade social e suas desigualdades sempre foram palco de choros e crises existenciais.

Posso dizer que fui uma criança muito investida de afeto e atenção por parte da minha família. Não me faltou carinho, escuta, acolhimento e cuidado. Era sorridente, feliz e criativa. Adorei vários pontos de ser criança, o que resultou na primeira grande crise que foi o medo de crescer e do que viria depois.